segunda-feira, 17 de maio de 2010

O círculo trágico e o amor tangente em "Abril Despedaçado"


O círculo trágico e o amor tangente em "Abril Despedaçado".

O filme do diretor Walter Salles, "Abril Despedaçado" (2001) marca a dura e cruel disputa entre duas famílias no interior nordestino, no ano de 1910, movida pela posse da terra, cujo marco central é o ódio e a vingança.

Uma camisa suja de sangue no varal, secando com o vento. Quando amarelar, o desespero será retomado. O personagem Tonho, interpretado por Rodrigo Santoro, tem a incumbência fatídica de levar a cabo a vingança da família Breves, cujo desfecho recente havia sido a morte de seu irmão mais velho.

No chão da casa, a secura escaldante da terra. Lá fora, os bois a girarem a roda para moer a cana. Era o sustento da família que vinha da cana moída, depois transformada em rapadura para ser vendida na cidade. O pai, a mãe e os dois irmãos trabalhavam duro para arrancar da cana decepada o sustento e a sobrevivência. A roda que é roda, pois, inexoravelmente, marca a batida das voltas em torno de um mesmo eixo, para manter-se vivo, para manter-se honrado. A saga da família é sentida pelo grito incessante do pai: “Vai, meu boi... vai...”


Na parede da sala, os quadros estampam as mortes dos que já tiveram sua camisa avermelhada e depois amarelada. Agora é a vez de Tonho sujar de sangue a camisa do assassino de seu irmão, e com isso, manter a honra de sua família incólume. Mais uma morte, mais sangue, Tonho agora teria sua vida dividida entre antes e depois daquela morte. Ele com apenas 2o anos, seria o próximo a morrer...

Tais acontecimentos deixam a cabeça de seu irmão mais novo, até então sem nome, rodeada de medo, até que passam dois viajantes, artistas de um circo popular, que irá se instalar na cidade. A linda jovem dá ao menino um livro, sobre uma sereia encantada. Mesmo sem saber decodificar os significantes, o menino cria um roteiro só para dar vida ao seu livro. Ele não seria mais o mesmo...

Na calada da noite, Tonho leva o menino para ver o circo. Lá, o brilho dos olhos de Tonho resplandece ao ver o semblante firme e destemido da jovem artista, a mesma que entregara o livro a seu irmão. Depois disso, tudo gira em torno da descoberta do amor. Ao contrário do giro da roda dos bois. Os dois voltam para casa radiantes; o menino, pelo espetáculo presenciado, batizado agora pelo artista circense pelo nome de "Pacu", nome de peixe . Tonho, pelo fogo do amor, cuspido pela moça de encontro ao seu peito...

Porém, eles voltam para casa e a roda trágica se dirige agora para Tonho. A camisa amarelara no varal da família inimiga havia secado. Era preciso correr, ou ficar e enfrentar a chegada da morte.

Mas a noite traz consigo o encanto da vida que se renova sob a forma da entrega amorosa. Tonho tem sua primeira noite de amor. Pacu observa que a chuva trouxera a esperança. Ele quer recontar sua estória. Quer ver a sereia. Sai então como se estivesse em transe, recontando, refazendo a leitura de sua vida. O sorriso do menino não pode explicar o desfecho que se aproxima. Ele parece antever que a chuva remexe por dentro aqueles que se abrem para beber sua água. Ele queria virar peixe. Virar "pacu"...

Contudo, para aqueles que estão possuídos pela vingança, o frescor da chuva nada pode fazer. O menino caminha mais uns passos. O seu assassino dispara. Tonho desperta, pressentindo o pior. A casa é despedaçada pela dor mais doída. A perda de um inocente. A roda trágica havia sido quebrada. Pacu, mesmo sem se dar conta, desfez a prisão que era fechada pelas portas da miséria, do abandono e do ódio incomensurável entre duas famílias inimigas.

Tonho sai para o caminho oposto ao da cidade. A encruzilhada é partida. Ele vai encontrar-se com o mar. O filme termina com o mar, e Tonho aturdido diante de sua imensidão, em horizonte por ele redefinido. Para quem se fecha, a dor da solidão. Para quem escapa da roda dos bois, o encontro definitivo com a sereia, com a memória recontada, com o amor envolvido pela chama da entrega.

Quem sabe ele mesmo não estaria ali a esperar por sua sereia? Questões em aberto, para um filme belo, rico em falas simples e sábias, com o teor da beleza penetrando os rincões da dor e do sinal mágico do amor transfigurado pela água a molhar a secura do chão, até então marcado pela marca do sangue e pela sina da vingança. Assim, o círculo da dor é rompido pela tangente do amor em "Abril Despedaçado". Tonho e Pacu se entrelaçam pelas águas da chuva e pela infinitude do mar. É o aberto sentido do sublime que se nos apresenta o desfecho do filme.

Amigos e amigas da sétima arte, essa é a leitura que fiz após a exibição do filme no Cine Filosófico, do dia 14 de maio de 2010.


Abraços cinéfilos.

Jorge Leão

17 de maio de 2010

Um comentário:

filosofia com arte disse...

Foi uma bela exibição e profícuo debate no cine filosófico do dia 14 de maio de 2010. Abraços aos amigos e amigas que abrilhataram a seção com "Abril Despedaçado". Até o próximo bate papo entre cinema e filosofia. Jorge Leão