Entre as ruínas da angústia em
Nauro Machado
Jorge Antônio
Soares Leão
O
encontro do poeta com as ruínas da cidade, vendo-se enquanto visceral angústia
de ser o pó que a cada dia perpassa a decrepitude do tempo. Eis o percurso
inglório da poética naurina, em vigoroso processo de afirmação de um eu lírico
perpassado pela angústia de fazer da poesia sua jornada humana por excelência.
Como
exemplo disso, é possível observar, em Pátria
do Exílio (2006), que Nauro Machado lança-se a si mesmo e sua cidade natal,
São Luís do Maranhão, como
horizonte poético de sua própria busca, mais uma vez vitalizando em sua poesia
a “exploração aguda de todos os estados mais angustiantes da consciência
humana” (LEÃO, 2001, p. 97).
É
neste cenário que a alma do poeta torna-se desse modo abrigo de um inquieto
semblante fecundo, a narrar o percurso de suas periclitantes agonias diante das
ruínas do tempo. Assim, diz o poeta:
Sou
a pátria do exílio agora,
nela
andando em minha essência. (MACHADO, 2007, p. 23)
Ao
tematizar sobre o drama de sua exploração mundana, no ser que caminha na
fugacidade da existência, os versos de Nauro Machado nos apresentam uma cidade
calcada pela dor de saber-se única em sua contínua asfixia. Este tema acompanha
a obra poética do autor, como um traço manifesto de seu olhar sobre sua cidade
natal.
É,
com efeito, a imagem de um corpo em decomposição, que aproxima o poeta de seu
espaço em torno da miséria e do tempo em ruínas, tornando-se fecundo narrador
de sua peregrina passagem pelas ruas de seu tempo existencial. Vejamos o soneto
10, de sua obra A Rosa Blindada (1990):
Cantar-te-ei,
cidade, qual se amada
fosses
até o final dos que têm ossos,
para,
no amor, cantar-te desamada
a
destroçar-me ao chão dos meus destroços.
Cantar-te-ei,
cidade, em todo e em cada
imundo
beco ou rua aos passos nossos,
e
em moribunda noite à madrugada
trazendo
o chumbo dos soluços grossos.
Cantar-te-ei,
cidade, o início e o fim
com
todo o corpo. E até no podre rim
carregado
por crápulas fiéis,
cantar-te-ei,
de imunda, o Senhor Morto
me
conduzindo ao cais do último porto
onde
dormirei eterno sob teus pés. (MACHADO, 1991, p. s/n)
A
cidade constitui, com isso, o encontro do poeta com a sua angústia cotidiana,
sobretudo quando a vê em ruínas, abandonada pela vulgar passagem de quem apenas
reflete sobre ela o traço dominante da atroz perda de memória com o seu útero.
Por isso, a poesia de Nauro Machado reveste-se de imagens viscerais para dar ao
corpo, que é também ruína, o espaço real de sua peregrinação. De modo a
proclamar em Lamparina da Aurora (1998):
Minha
ofensa tomba
Aos
teus pés, cidade.
(Inatingido
alto
do
meu chão corpóreo.) (MACHADO, 1998, p. 333)
A
fugacidade da existência, que todo momento se volta como ponto reflexivo em sua
obra, nos conduz à problemática visceral do corpo, e, desse modo, o poeta
sente-se em estado de vigília sobre o encontrar-se no tempo-espaço permanente
de seu ethos
natal, como um peregrino lutando por dar à sua lida diária o olhar de quem
resgata do abandono e da miséria o pensamento situado como espaço a ser
habitado pela poesia. Isto reflete a própria angústia do humano, como essencial
peregrinação do ser diante da finitude.
Contudo,
será por meio de um verbo inaudito e avassalador que o traço poético do autor
encontrar-se-á diante das contraditórias artimanhas de um tempo fatalmente
arruinado pela busca do valor infértil das coisas produzidas em seu lócus citadino.
Este
conflito traz à angústia de sua peregrina memória poética o espaço propício
capaz de desconstruir com o fim meramente utilitário das coisas e de seu
pretenso domínio fugaz, enquanto redução do humano a uma inautêntica existência.
Será, pois, com a palavra que se reconhece, no poeta, a remissão do humano,
pois somente nela é possível a liberdade criadora da própria existência. Assim
nos diz o autor de A vigésima jaula (1974):
Pois
sem palavra não pesa
um
corpo morto, e sem ela,
a
palavra, é morta a vida,
só
a palavra diz do peso,
inda
que a sustente o etéreo. (MACHADO, 1974, p. 7).
Palavra
que assume o compromisso de fazer-se presença daquilo de que se ocupa o poeta:
a angústia do ser humano diante de sua finitude. Por isso, ainda nos afirma
Nauro, em O cavalo de Tróia (1998):
Não
entra no poema o exterior a ele:
o
sossego infinito do universo. (MACHADO, 1998, p. 239)
E
não seria outro o ofício deste peregrino do ser, uma vez que é no interior do
poema que se encontra a fecundidade da existência. Por isso, o poeta adoece com
a realidade. O seu pathos, ou seja,
sua capacidade de estar ligado poeticamente ao mundo, é de onde se vê
inaugurado o desassossego do humano. A realidade é tomada pela angústia do
poeta, ao lançar-se como tecelão da existência. Ele vai tecendo a existência,
enquanto traça em versos os incansáveis gritos de sua agonia telúrica.
Na
mesma obra, ainda nos apresenta o autor a seguinte afirmação sobre a angústia:
Não
me aposentarei jamais da angústia
(meu
simples deglutir digere a angústia)
a
perseguir-me neste único emprego
sem
paga e valia, exceto a de ser-me. (Idem, p. 238).
O
poeta é, desse modo, penetrado existencialmente por saber-se como um contínuo processo
de fazer-se como poeta no mundo. Assim, ele se faz no mundo como prisioneiro
consciente de sua tarefa ocupacional, que reverbera em si o passar do tempo
como momento oportuno, afirmando-se pela fecundidade da palavra.
Por
duas mil angústias, ó poeta,
as
coisas todas, que falam a sós,
falarão
por ti a voz plural. Completa. (MACHADO, 1990, p. s/n).
Como
Prometeu acorrentado à pedra do destino inexorável, o poeta existe na
experiência cotidiana de sua arte, como devorado pela águia de um deus
inclemente, ao visitá-lo pelo acordar a cada dia sedento por um novo parto da
palavra. Neste espaço situado, ele se descobre alguém que fala da angústia
humana, pois a traz consigo visceralmente.
Como
Ariadne, ele lança seu fio existencial no labirinto do tempo. Contudo, não
espera ser libertado por Teseu deste seu habitat
visceral. Por debaixo dos espinhos das linhas em branco do papel à sua frente,
o poeta aprende, assim, a cada hora sofrida, a deitar-se ao lado de seu destino
humano, e de sua ocupação originária, fecundada pela angústia de ser poeta por
toda a existência.
E
em sua cidade este drama renasce a cada dia. Será neste cenário, escavado pela
solidão do fazer-se duramente poeta, que a palavra ressoa nas ruas, ruínas e
becos da vetusta cidade. Enquanto corpo, pelo cotidiano de seus passos, o olhar
arguto do poeta refaz a trajetória de uma história fadada à decrepitude no
tempo do seu findar-se.
Não
obstante este drama fatídico, o poeta descobre-se, pelo encantamento de sua fecunda
imaginação, refazendo-se em busca de um ser mais pleno de poesia. Ainda que
seja desesperador viver diante do perceber-se faminto de vida, tendo à frente a
sua terra natal abandonada pelas pedras de uma visão turva e envelhecida, o
poeta lança sua sina como um chão a ser pisado pelas torturantes feituras de
seu próprio fenecer.
Ó
terra do meu medonho
Despertar
horizontal,
No
imaginário que ponho
Aberto
para o real,
Querendo
sonhar meu sonho
Antes
do sono final! (MACHADO, 2007, p. 77).
Na
solidão de seus estreitos espaços, a cidade fecunda a imaginação do poeta,
enquanto observador da morte em vida, vendo com isso o drama de sua existência
enquanto fertilidade do ser, transmutado pela dor em seu abandono temporal.
Ó
São Luís, chão que é mais
Do
que tudo o que me fez:
Se
é Natal, e tudo é paz,
Sem
Maria alguma em prenhez,
Eu
sou quem morto em mim jaz,
Vivendo
a morte outra vez. (Idem, p. 72).
Encontramos,
portanto, uma leitura da angústia indissociável do ser que se situa no
espaço-tempo de sua cidade. Aqui reside uma das mais percucientes abordagens
existenciais da poesia naurina. Por lançar-se como cenário cotidiano de si
mesmo, o poeta, e com ele a cidade, encontram-se em constante processo de
interlocução, no chão árido de suas vicissitudes.
E
pela terra interposta
Entre
mim e a sua medida,
Esse
sonho é como a aposta
Que
fiz entre mim e a vida:
Eu,
a carregá-la na costa,
Ela,
a olhar-me em despedida (Idem, p. 78).
Como
palavra situada no pesadume de sua finitude, o poeta invoca a dor de uma
existência que se doa no espaço de uma vida dedicada diuturnamente ao drama
inquebrantável de sua peregrinação mundana.
Assim,
vê-se na poesia de Nauro Machado um trajeto onde o ser do poeta está entranhado
com o ser de sua cidade, pois nela se faz e refaz a angústia de tornar-se o que
é, ou seja, poeta, que se vê na dureza de seu ofício a fecundar a palavra com o
ser de sua alma em angústia.
Referências
LEÃO,
Ricardo. Tradição e ruptura: a lírica
moderna de Nauro Machado. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 2001.
MACHADO,
Nauro. A vigésima jaula. Rio de
Janeiro: Olímpica Editora, 1974.
______.
A Rosa Blindada. Brasília: Editora
Alhambra, 1990.
______.
Antologia Poética. Rio de Janeiro:
Imago Editora; Fundação Biblioteca Nacional Universidade de Mogi das Cruzes,
1998.
______.
Pátria do Exílio. (Terceiro e último
canto do poema Trindade Dantesca).
São Luís, Lithograf, 2007.