quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Entre as ruínas da angústia em Nauro Machado


Entre as ruínas da angústia em Nauro Machado

                             Jorge Antônio Soares Leão[1]
O encontro do poeta com as ruínas da cidade, vendo-se enquanto visceral angústia de ser o pó que a cada dia perpassa a decrepitude do tempo. Eis o percurso inglório da poética naurina, em vigoroso processo de afirmação de um eu lírico perpassado pela angústia de fazer da poesia sua jornada humana por excelência.
Como exemplo disso, é possível observar, em Pátria do Exílio (2006), que Nauro Machado lança-se a si mesmo e sua cidade natal, São Luís do Maranhão[2], como horizonte poético de sua própria busca, mais uma vez vitalizando em sua poesia a “exploração aguda de todos os estados mais angustiantes da consciência humana” (LEÃO, 2001, p. 97).
É neste cenário que a alma do poeta torna-se desse modo abrigo de um inquieto semblante fecundo, a narrar o percurso de suas periclitantes agonias diante das ruínas do tempo. Assim, diz o poeta:
Sou a pátria do exílio agora,
nela andando em minha essência. (MACHADO, 2007, p. 23)
Ao tematizar sobre o drama de sua exploração mundana, no ser que caminha na fugacidade da existência, os versos de Nauro Machado nos apresentam uma cidade calcada pela dor de saber-se única em sua contínua asfixia. Este tema acompanha a obra poética do autor, como um traço manifesto de seu olhar sobre sua cidade natal.
É, com efeito, a imagem de um corpo em decomposição, que aproxima o poeta de seu espaço em torno da miséria e do tempo em ruínas, tornando-se fecundo narrador de sua peregrina passagem pelas ruas de seu tempo existencial. Vejamos o soneto 10, de sua obra A Rosa Blindada (1990):
Cantar-te-ei, cidade, qual se amada
fosses até o final dos que têm ossos,
para, no amor, cantar-te desamada
a destroçar-me ao chão dos meus destroços.
Cantar-te-ei, cidade, em todo e em cada
imundo beco ou rua aos passos nossos,
e em moribunda noite à madrugada
trazendo o chumbo dos soluços grossos.
Cantar-te-ei, cidade, o início e o fim
com todo o corpo. E até no podre rim
carregado por crápulas fiéis,
cantar-te-ei, de imunda, o Senhor Morto
me conduzindo ao cais do último porto
onde dormirei eterno sob teus pés. (MACHADO, 1991, p. s/n)
A cidade constitui, com isso, o encontro do poeta com a sua angústia cotidiana, sobretudo quando a vê em ruínas, abandonada pela vulgar passagem de quem apenas reflete sobre ela o traço dominante da atroz perda de memória com o seu útero. Por isso, a poesia de Nauro Machado reveste-se de imagens viscerais para dar ao corpo, que é também ruína, o espaço real de sua peregrinação. De modo a proclamar em Lamparina da Aurora (1998):
Minha ofensa tomba
Aos teus pés, cidade.
(Inatingido alto
do meu chão corpóreo.) (MACHADO, 1998, p. 333)
A fugacidade da existência, que todo momento se volta como ponto reflexivo em sua obra, nos conduz à problemática visceral do corpo, e, desse modo, o poeta sente-se em estado de vigília sobre o encontrar-se no tempo-espaço permanente de seu ethos[3] natal, como um peregrino lutando por dar à sua lida diária o olhar de quem resgata do abandono e da miséria o pensamento situado como espaço a ser habitado pela poesia. Isto reflete a própria angústia do humano, como essencial peregrinação do ser diante da finitude.
Contudo, será por meio de um verbo inaudito e avassalador que o traço poético do autor encontrar-se-á diante das contraditórias artimanhas de um tempo fatalmente arruinado pela busca do valor infértil das coisas produzidas em seu lócus citadino.
Este conflito traz à angústia de sua peregrina memória poética o espaço propício capaz de desconstruir com o fim meramente utilitário das coisas e de seu pretenso domínio fugaz, enquanto redução do humano a uma inautêntica existência. Será, pois, com a palavra que se reconhece, no poeta, a remissão do humano, pois somente nela é possível a liberdade criadora da própria existência. Assim nos diz o autor de A vigésima jaula (1974):
Pois sem palavra não pesa
um corpo morto, e sem ela,
a palavra, é morta a vida,
só a palavra diz do peso,
inda que a sustente o etéreo. (MACHADO, 1974, p. 7).
Palavra que assume o compromisso de fazer-se presença daquilo de que se ocupa o poeta: a angústia do ser humano diante de sua finitude. Por isso, ainda nos afirma Nauro, em O cavalo de Tróia (1998):
Não entra no poema o exterior a ele:
o sossego infinito do universo. (MACHADO, 1998, p. 239)
E não seria outro o ofício deste peregrino do ser, uma vez que é no interior do poema que se encontra a fecundidade da existência. Por isso, o poeta adoece com a realidade. O seu pathos, ou seja, sua capacidade de estar ligado poeticamente ao mundo, é de onde se vê inaugurado o desassossego do humano. A realidade é tomada pela angústia do poeta, ao lançar-se como tecelão da existência. Ele vai tecendo a existência, enquanto traça em versos os incansáveis gritos de sua agonia telúrica.
Na mesma obra, ainda nos apresenta o autor a seguinte afirmação sobre a angústia:
Não me aposentarei jamais da angústia
(meu simples deglutir digere a angústia)
a perseguir-me neste único emprego
sem paga e valia, exceto a de ser-me. (Idem, p. 238).
O poeta é, desse modo, penetrado existencialmente por saber-se como um contínuo processo de fazer-se como poeta no mundo. Assim, ele se faz no mundo como prisioneiro consciente de sua tarefa ocupacional, que reverbera em si o passar do tempo como momento oportuno, afirmando-se pela fecundidade da palavra.

Por duas mil angústias, ó poeta,
as coisas todas, que falam a sós,
falarão por ti a voz plural. Completa. (MACHADO, 1990, p. s/n).
Como Prometeu acorrentado à pedra do destino inexorável, o poeta existe na experiência cotidiana de sua arte, como devorado pela águia de um deus inclemente, ao visitá-lo pelo acordar a cada dia sedento por um novo parto da palavra. Neste espaço situado, ele se descobre alguém que fala da angústia humana, pois a traz consigo visceralmente.
Como Ariadne, ele lança seu fio existencial no labirinto do tempo. Contudo, não espera ser libertado por Teseu deste seu habitat visceral. Por debaixo dos espinhos das linhas em branco do papel à sua frente, o poeta aprende, assim, a cada hora sofrida, a deitar-se ao lado de seu destino humano, e de sua ocupação originária, fecundada pela angústia de ser poeta por toda a existência.
E em sua cidade este drama renasce a cada dia. Será neste cenário, escavado pela solidão do fazer-se duramente poeta, que a palavra ressoa nas ruas, ruínas e becos da vetusta cidade. Enquanto corpo, pelo cotidiano de seus passos, o olhar arguto do poeta refaz a trajetória de uma história fadada à decrepitude no tempo do seu findar-se.
Não obstante este drama fatídico, o poeta descobre-se, pelo encantamento de sua fecunda imaginação, refazendo-se em busca de um ser mais pleno de poesia. Ainda que seja desesperador viver diante do perceber-se faminto de vida, tendo à frente a sua terra natal abandonada pelas pedras de uma visão turva e envelhecida, o poeta lança sua sina como um chão a ser pisado pelas torturantes feituras de seu próprio fenecer.

Ó terra do meu medonho
Despertar horizontal,
No imaginário que ponho
Aberto para o real,
Querendo sonhar meu sonho
Antes do sono final! (MACHADO, 2007, p. 77).

Na solidão de seus estreitos espaços, a cidade fecunda a imaginação do poeta, enquanto observador da morte em vida, vendo com isso o drama de sua existência enquanto fertilidade do ser, transmutado pela dor em seu abandono temporal.

Ó São Luís, chão que é mais
Do que tudo o que me fez:
Se é Natal, e tudo é paz,
Sem Maria alguma em prenhez,
Eu sou quem morto em mim jaz,
Vivendo a morte outra vez. (Idem, p. 72).

Encontramos, portanto, uma leitura da angústia indissociável do ser que se situa no espaço-tempo de sua cidade. Aqui reside uma das mais percucientes abordagens existenciais da poesia naurina. Por lançar-se como cenário cotidiano de si mesmo, o poeta, e com ele a cidade, encontram-se em constante processo de interlocução, no chão árido de suas vicissitudes.

E pela terra interposta

Entre mim e a sua medida,

Esse sonho é como a aposta

Que fiz entre mim e a vida:

Eu, a carregá-la na costa,

Ela, a olhar-me em despedida (Idem, p. 78).

Como palavra situada no pesadume de sua finitude, o poeta invoca a dor de uma existência que se doa no espaço de uma vida dedicada diuturnamente ao drama inquebrantável de sua peregrinação mundana.

Assim, vê-se na poesia de Nauro Machado um trajeto onde o ser do poeta está entranhado com o ser de sua cidade, pois nela se faz e refaz a angústia de tornar-se o que é, ou seja, poeta, que se vê na dureza de seu ofício a fecundar a palavra com o ser de sua alma em angústia.  

Referências
LEÃO, Ricardo. Tradição e ruptura: a lírica moderna de Nauro Machado. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 2001.
MACHADO, Nauro. A vigésima jaula. Rio de Janeiro: Olímpica Editora, 1974.
______. A Rosa Blindada. Brasília: Editora Alhambra, 1990.
______. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Imago Editora; Fundação Biblioteca Nacional Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.
______. Pátria do Exílio. (Terceiro e último canto do poema Trindade Dantesca). São Luís, Lithograf, 2007.


[1] Professor de Filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, Campus São Luís Monte Castelo.
[2] Onde nasce no dia 2 de agosto de 1935.
[3] Palavra grega para designar “morada”, “habitação”, “cuidado”.

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