terça-feira, 3 de março de 2009

O Enigma de Kaspar Hauser


O Enigma de Kaspar Hauser

O instigante filme “O Enigma de Kaspar Hauser” (ano de 1974), do cineasta alemão Werner Herzog, vencedor do Grande Prêmio do Júri, no festival de Cannes, em 1975, levanta para nós um tema filosófico polêmico, a saber: há uma racionalidade própria à natureza humana, ou ainda, é possível admitir uma natureza humana?

O drama do personagem, interpretado por Bruno S., que não era ator profissional, mas que trabalhou com muito esforço com o diretor alemão, é iniciado, mostrando-o sozinho, sentado, isolado, emitindo sons como de um animal, envolvendo um pano velho em um cavalo de brinquedo. Ele se encontra preso por um corrente, bebe água e come um pedaço de pão. É quando chega um homem vestido de preto, põe um banquinho à sua frente, entregando-lhe um papel e um lápis, forçando-o a escrever. Kaspar Hauser tenta segurar o lápis e escrever algo sozinho. Diante disso, levanta-se outra questão: já há no ser humano uma predisposição para a linguagem, em termos de uma ação consciente?

Em seguida, ele é carregado pelo homem, que o leva para o alto de um monte, pois o nosso personagem não sabe sequer andar. Com muita dificuldade, ele dá os primeiros passos. Aqui, fica explícito o entendimento de que o ambiente determina tanto aspectos físicos, quanto psico-sociais ao ser humano.

Algumas fotografias expõem de modo simples e belo os campos, os telhados, o relógio, a vila, imagens que refletem a mente obscura de um ser isolado, e que agora precisa urgentemente descobrir o mundo. O homem de preto vai-se, e Kaspar Hauser permanece imóvel no meio da praça com uma carta na mão, sendo observado pelos moradores, até que alguém pergunta a ele aonde quer ir, e se pode ajudá-lo, entregando a carta que segura a seu destinatário. O capitão da cavalaria, a quem foi destinada a carta, lê a história daquele rapaz com aspecto de uma criatura abandonada, isolado do convívio social. Não é possível extrair nada dele, como num interrogatório policial. Ele não fala e nem reage às perguntas. O único sinal é o seu nome, que é assinado no papel dado a ele. Resolvem, por isso, isolá-lo em uma cela, dizendo que devem enquadrá-lo nas normas legais, ainda que não parecesse ser ele um vândalo, dizem os guardas, que depois o levam para a casa de um dos moradores da vila.

Lá, o nosso enigmático personagem tem contato com uma família muito caridosa, que ensina a ele os hábitos sociais básicos, como sentar-se a mesa, pronunciar as palavras e frases, aprender a relacionar-se com o mundo a sua volta, ao tentar memorizar um poema ensinado pela filha do guarda da prisão e dono da casa, ou ao brincar com um passarinho, dando-lhe alimento. Ele ainda é capaz de se emocionar com uma criança nos braços, dizendo: “Mãe, sou desprezado por todos”, depois de ser motivo de zombaria para um grupo de bêbados arruaceiros.

Os oportunistas que o vigiam levam-no para o circo, a fim de tirar proveito de interesse público, como a grande atração. De lá ele passa a morar na casa do Sr. Daumer, um sujeito que assistia ao espetáculo circense, e que lhe dá todas as condições para que, enfim, seja despertada nele a potencialidade de socialização.

Ao ouvir o piano, já na casa do Sr. Daumer, ele diz: “Soa forte no meu peito a música. Estou muito velho? Por que tudo é tão difícil para mim? Por que não posso tocar piano como respiro?”... O Sr. Daumer responde a ele que, passados dois anos de convívio, ele já aprendera muita coisa, mas que ainda deve aprender tudo, pois nunca estivera entre os homens antes. Ao que Kaspar Hauser responde: “Para mim os homens são como os lobos”. Aqui, percebemos que, ao ter o domínio da linguagem, o personagem começa a colocar uma dúvida sobre a sua suposta “pureza”, como se essa denotasse uma impossibilidade de análise mais depurada da realidade. O que parece aqui ser ponto para reflexão é: a dita “civilização moderna” não delimita o poder de criticidade do homem, quando de seu processo de socialização?...

A própria existência de Deus é levada por dois teólogos a Kaspar Hauser, com o objetivo de doutriná-lo. “Já tinha alguma idéia de Deus?”, pergunta um dos teólogos. Ele apenas responde: “No cativeiro eu não pensava em nada, e não consigo imaginar que Deus do nada criou tudo, como vocês me disseram”. Um dos teólogos retruca imediatamente: “Deve admitir o mistério da fé sem procurar entender”. Mas, sabiamente, responde Kaspar Hauser: “Primeiro, preciso aprender a ler e a escrever melhor para compreender o resto”...

Vê-se que são questões polêmicas, agora situadas no contexto de uma possível resposta crítica a ser dada pelo personagem, como se o mesmo tivesse agora que lutar contra um sistema de códigos lingüísticos, ideológicos, estéticos, lógicos, teológicos, morais, prontos para extrair de sua mente uma resposta pronta e acabada. Duas cenas são marcantes para ilustrar esse embate: a primeira, em que Kaspar Hauser pergunta à governanta do Sr. Daumer: “para que servem as mulheres, e por que só lhe permitem cozinhar e fazer crochê?”, ao que ela desconversa e pede que isso seja perguntado ao Sr. Daumer; a segunda, quando um professor de lógica lança uma situação problema de caráter lógico dedutivo, dizendo que só há um modo de respondê-la, e depois da demonstração do professor, Kaspar Hauser apresenta outra possibilidade de resposta, o que, obviamente, não é aceito pelo ortodoxo professor. Pessoas como Kaspar Hauser são nessas horas consideradas loucas e inoportunas...

Com isso, o convívio social torna-se uma tortura para o nosso personagem. Numa recepção nobre, na casa de um conde inglês, ele se sente mal e sai, depois de expressar no piano o que sentia em sua alma através da valsa em Fá Maior, de Mozart. Em seguida, ele sai correndo da igreja, dizendo que a canção dos fiéis soa em seus ouvidos como um grito horrível. Fica aqui explícita a idéia de que não há enquadramento possível para Kaspar Hauser, capaz de satisfazer a sua busca interior. É quando ele é agredido em sua casa, com duas pauladas na cabeça. Ele parecia incomodar algumas pessoas. A sua indiferença aos padrões. O seu jeito “anti-social”. Mas faltava uma coisa a ser dita por ele. É quando ele tem uma visão profética. “Eu vi o mar. Eu vi uma montanha, e muita gente. Estavam todos subindo a montanha, como uma procissão. Havia muita neblina. Eu não conseguiria enxergar claramente. E lá em cima, estava a morte”.

Depois de recuperar-se, ocorre outro atentado, agora para conduzi-lo de vez à morte. Nos momentos derradeiros, já no leito de morte, Kaspar Hauser conta a sua última história. “Vejo uma caravana que vem pelo deserto atravessando a areia, guiada por um velho cego. A caravana parou, alguns acreditam que eles se perderam, pois se depararam com as montanhas. Eles não conseguem seguir a bússola. Então o guia cego pega um punhado de areia e a come, como se fosse uma comida. ‘Meus filhos’, diz o cego, vocês estão errados, isto diante de nós não são montanhas, e sim , apenas sua imaginação. Prosseguiremos para o norte’. E então, sem discutirem, eles prosseguiram adiante e chegaram na cidade. E lá a história continua. Mas a história nesta cidade, eu não sei. Eu agradeço por terem ouvida minha história. Estou cansado agora”...

Kaspar Hauser morre, e é logo autopsiado. Os médicos legistas examinam o seu cérebro e percebem uma deformidade, o seu lado esquerdo é menor. Isso dará um lindo processo investigativo. O escrivão, que relata o drama de Kaspar Hauser desde o seu início, afirma: “Finalmente temos a melhor explicação que podíamos achar sobre este estranho personagem”. Uma fala que nada mais representa do que a tentativa de justificar a ineficaz condução social dada pelos anos de não adaptação de Kaspar Hauser a um sistema ideológico alicerçado na burocracia das normas prescritas, segundo modelos fixos de padronização sócio-cultural.

Observa-se desse modo que é mais cômodo colocar a culpa da não sociabilidade do personagem a algum fator fisiológico, do que mergulhar fundo na questão antropológica da vida social e seus desdobramentos nem sempre logicamente demonstráveis e cientificamente comprováveis. Não estaria o filme de Herzog levantando outra possibilidade de responder à polêmica acerca de uma natureza pura do homem ou de uma racionalidade inata, que também necessitaria, para ser melhor compreendida, de afetividade, imaginação, criatividade e amor? Fica para nós a reflexão, em tons de polêmica e controvérsias...

Jorge Leão
Professor de Filosofia do Instituto Federal do Maranhão, e membro do Movimento Familiar Cristão
Em: 03 de março de 2009

4 comentários:

Jú Martins disse...

Olá Prof. Jorge Leão. Assisti este filme hoje durante uma aula de sociolingüística na UFMA. Já conhecia a história real de Kaspar Hauser, porque sempre foi uma curiosidade minha a relação entre a linguagem e a sociedade, pois não acredito que uma seja desvinculada da outra. E achei esse filme muito interessante, apesar dele parecer confuso e por vezes atemporal (talvez seja a intenção do diretor). Gostei muito da sua resenha sobre ele e acho muito legal que ele seja passado nas escolas. Pois é um retrato da “pureza” de uma criatura que se desenvolve às escuras, longe dos preconceitos e ideologias da vida em sociedade.
Podemos perceber isso em muitas cenas onde Kaspar Hauser parece ter uma maneira própria de analisar o mundo e essa visão "diferente" é marginalizada pelos "intelectuais", detentores de todo o conhecimento. Para o professor, a lógica implica na existência de uma só resposta. Como Kaspar entenderia isso vivendo em um mundo rodeado pela diversidade? Qual seria afinal o enigma de Kaspar Hauser? A sua origem? A sua rapidez em aprender o léxico e mecanismos desse novo mundo? Ou o mistério que envolve a vida humana?
Já foram encontradas outras crianças como K.H., mas muitas delas sequer conseguiram desenvolver a linguagem, emitindo apenas grunhidos ou comunicando-se através de gestos. Algumas não conseguiram se adaptar à vida com o "lobo-homem". O que me faz pensar... Kaspar deve ter tido um contato prolongado com um adulto quando pequeno... Ele possui desenvolvimento cognitivo de uma criança, e com o tempo vai conseguindo diferenciar a realidade do sonho (afinal, como saberia que estava sonhando se desconhecia este conceito?). Me lembra muito Freud quando fala nas instância psíquicas. Que a criança não consegue diferenciar o real do imaginário (ID) e quando fica mais velha, com as experiências, esta instância se diferencia no Ego (real/irreal) e SuperEgo (os valores, o certo e o errado).
Nosso estágio se deve a uma coleção de conhecimentos e valores que não foram criados do dia para a noite, e sim durante toda a existência da humanidade. Para adquirirmos esses conhecimentos, o contato social é necessário. Por isso considero a linguagem um fato social. Bem, jamais saberemos ao certo o mistério que o envolve. Na verdade o que queria entender é o pq da escolha do título em alemão "Um por sí e Deus contra todos". Ah, você foi meu professor no Cefet, no 1º ano (Sociologia).Tomara que ainda se lembre de mim!!! Achei seu blog sem querer (e que bom que achei!!). Um abraço e parabéns!

filosofia com arte disse...

lembro sim, juju, obrigado pelo texto, suas palavras foram muito bem construídas, continue visitando e comentando o nosso blog, e quando quiser, visite o antigo CEFET, hoje INSTITUTO FEDERAL DO MARANHAO, parabéns pelo curso que voce escolheu, um abraço grande!
Jorge Leão

Jú Martins disse...

Prof., Vc levantou o seguinte questionamento: "há uma racionalidade própria à natureza humana, ou ainda, é possível admitir uma natureza humana?"? Qual a SUA opinião? Eu não consigo acreditar em uma natureza 'humana'. Pq quando penso em NATUREZA, me vem à cabeça algo quase que determinista. Não sei se estou conseguindo me expressar... Tipo, "qual a natureza do gato", por exemplo? Se criarmos um gato em casa, longe de outro gato, mesmo assim... Ele não vai se comportar como um gato?

***Isso está me deixando confusa. Cada vez que crio uma teoria, logo depois eu penso em algo para refutá-la... :/

filosofia com arte disse...

Juliana,
bom dia,
saúde e muita paz!
em primeiro lugar,
obrigado por responder...
como você percebe,
essa é uma questão árida, e longe de se ter uma resposta definitiva, os filósofos, desde Platão e Aristóteles, vêm se debruçando sobre isso. Mas, penso que é possível dar ao conceito de "natureza" uma aproximação com o exercício da racionalidade, não determinada aprioristicamente, mas fruto do pensar, de seu exercício, e ao longo das relações estabelecidas entre a consciência e o mundo. O segundo ponto é admitir que temos uma causa principial que rege nossa consciência, e isso não é consenso entre os filósofos, mas no meu caso admito que devemos buscar nossa reconciliação com o princípio, Deus, e a Natureza (objetiva), pois neste caminho descobriremos o equilíbrio que nos falta. Isso pode parecer mística religiosa, e de fato é, mas não no sentido de uma doutrina teológica, mas como sentido de auto-conhecimento. Assim, devemos considerar a natureza humana como sedenta por sentido, e a racionalidade, que nos pode servir de fundamento(não só ela claro),traduz de modo fecundo este exercício de liberdade, ou como queiram chamar alguns,"a razão humana"...
Neste sentido, considero a natureza humana como um todo orgânico, constituída de corpo, mente e espírito, pois fundamento esta tese na compreensão holística orgânica, de laços pitagóricos, como ponto de mutação entre Deus, Natureza e Sabedoria. Fica o convite para trilharmos esse caminho...
Abraços,
e obrigado pela oportunidade!
Jorge Leão