sábado, 4 de fevereiro de 2012

Sobre a passagem do tempo no poema "Sentimento do Mundo"

Sobre a passagem do tempo no poema "Sentimento do Mundo"

O tempo como problema filosófico constitui de fato um debate que instiga muitos filósofos ao longo da história. De modo geral, posso falar do tempo como passagem, isto é, como sucessão de acontecimentos dentro de um período, o que dá o caráter cronológico ao tempo.

Num segundo momento, trabalho com o tempo psicológico. A impressão subjetiva que um fato me causa. Por exemplo, posso dizer que a música de Mozart me causa contentamento e elevação, quando a ouço. Ou ainda, que o pôr do sol me passa leveza e paz de espírito. Isto é característico de quando nos lançamos de modo desinteressado às obras de arte.

O terceiro elemento do tempo é o existencial, que nos remete ao sentido pleno da vida. Perguntas arquetípicas como "o que é Deus", "por que morremos", "qual o sentido da existência", "é possível a felicidade diante da dor e da morte", são aspectos que nos remetem assim ao tempo dos filósofos, isto é, daqueles que buscam incessantemente o conhecimento da verdade.

Tomemos agora, como possibilidade de uma hermenêutica do tempo, o poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado "Sentimento do Mundo" (do livro homônimo, do ano de 1940). O poeta inicia com os versos:

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

As palavras "mãos"e "corpo" nos colocam o tempo cronológico, como evidência primeira da materialidade situada na história. Com a relação das "lembranças" escorrendo, e o corpo transigindo na "confluência do amor", já nos diz algo da percepção que o poeta tem de sua situação mundana, como ser que estabelece um "sentimento do mundo". O que nos confronta com o tempo psicológico.

Na segunda estrofe, temos:

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto;
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

O tempo cronológico está presente em "quando me levantar", acompanhado do sentimento de que "eu mesmo estarei morto", "morto meu desejo", o que nos remete mais uma vez ao encontro do tempo psicológico. No fim, porém, a expressão "pântano sem acordes" parece nos indicar uma imagem de profunda ausência de sentido diante da dor e da morte.

Seguindo o poema, encontro as palavras:

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
Anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

O poeta encontra-se no drama de uma decisão, ao fazer do tempo uma escolha: ir à guerra ou debandar da luta. Isto causa a dispersão, e a necessidade de recuperar a confiança perdida, ilustrando o aspecto psicológico deste cenário em conflito.

Na última estrofe, nos fala Drummond:

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

Mais uma vez ocorre o tempo cronológico em contraponto ao psicológico, quando a passagem dos corpos diz da solidão e da memória habitada pela lembrança de um passado incerto, mas que em seu amanhecer anuncia o prelúdio de um novo começo.

Estes elementos poéticos são indicações fecundas para a relação da filosofia com a temporalidade. Isto é, a percepção subjetiva, a certeza do fim e a busca por um sentido último para a existência. Nesta transparência poética, há uma ponte que liga as mãos do poeta ao "sentimento do mundo". Limitar o tempo apenas à passagem fatídica, é o mesmo que fazer da vida um começo previsto com um fim incerto. Neste poema, a riqueza de metáforas pode confrontar a morte com a abertura do sentido existencial, e a vitalidade do corpo que insiste em "transigir na confluência do amor".

Jorge Leão
Em 04 de fevereiro de 2012

Um comentário:

filosofia com arte disse...

Este tema foi trabalhado com as turmas 404, de Química, e 204, de Eletrônica, durante os dias de janeiro e início de fevereiro, de 2012, como término do estudo sobre as teorias do conhecimento.
A discussão com a turma 404 rendeu até uma apresentação muito rica sobre a temporalidade nos quadros de Escher, o que foi bastante enriquecedor para a ampliação do debate sobre o assunto em pauta.
Até a próxima aula!
Jorge Leão