sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A busca pelo óleo de Lorenzo



A busca pelo óleo de Lorenzo

Filme de 1992, dirigido por George Miller, O óleo de Lorenzo foi trabalhado há poucos dias na sala de Design de Produto, turma 201, quando eu estava a discorrer sobre métodos de pesquisa na ciência.

Pareceu-me instigante o modo como o filme aborda a questão da indissociável relação entre pesquisa científica, interesses econômicos da indústria farmacêutica e o envolvimento dos pais da criança que padecia de uma doença rara e fulminante.

O debate transcorreu envolvendo também as relações éticas e afetivas da pesquisa científica e o quanto a motivação pela cura é algo primordial na dura batalha pela vida. Sobretudo quando nem sempre a ciência médica aborda o tratamento com o mesmo afinco, como a família de quem está envolvido no problema.

Vale muito a reflexão sobre o tema. Atualmente, a ciência, também por isso, já repensa muitas de suas fragilidades no que diz respeito a abordagem médico-paciente, o que tem trazido algum avanço na percepção científica e sócio-afetiva da questão clínica.

Jorge Leão
Professor de Filosofia do IFMA - Campus Monte Castelo
03 de setembro de 2010

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O círculo trágico e o amor tangente em "Abril Despedaçado"


O círculo trágico e o amor tangente em "Abril Despedaçado".

O filme do diretor Walter Salles, "Abril Despedaçado" (2001) marca a dura e cruel disputa entre duas famílias no interior nordestino, no ano de 1910, movida pela posse da terra, cujo marco central é o ódio e a vingança.

Uma camisa suja de sangue no varal, secando com o vento. Quando amarelar, o desespero será retomado. O personagem Tonho, interpretado por Rodrigo Santoro, tem a incumbência fatídica de levar a cabo a vingança da família Breves, cujo desfecho recente havia sido a morte de seu irmão mais velho.

No chão da casa, a secura escaldante da terra. Lá fora, os bois a girarem a roda para moer a cana. Era o sustento da família que vinha da cana moída, depois transformada em rapadura para ser vendida na cidade. O pai, a mãe e os dois irmãos trabalhavam duro para arrancar da cana decepada o sustento e a sobrevivência. A roda que é roda, pois, inexoravelmente, marca a batida das voltas em torno de um mesmo eixo, para manter-se vivo, para manter-se honrado. A saga da família é sentida pelo grito incessante do pai: “Vai, meu boi... vai...”


Na parede da sala, os quadros estampam as mortes dos que já tiveram sua camisa avermelhada e depois amarelada. Agora é a vez de Tonho sujar de sangue a camisa do assassino de seu irmão, e com isso, manter a honra de sua família incólume. Mais uma morte, mais sangue, Tonho agora teria sua vida dividida entre antes e depois daquela morte. Ele com apenas 2o anos, seria o próximo a morrer...

Tais acontecimentos deixam a cabeça de seu irmão mais novo, até então sem nome, rodeada de medo, até que passam dois viajantes, artistas de um circo popular, que irá se instalar na cidade. A linda jovem dá ao menino um livro, sobre uma sereia encantada. Mesmo sem saber decodificar os significantes, o menino cria um roteiro só para dar vida ao seu livro. Ele não seria mais o mesmo...

Na calada da noite, Tonho leva o menino para ver o circo. Lá, o brilho dos olhos de Tonho resplandece ao ver o semblante firme e destemido da jovem artista, a mesma que entregara o livro a seu irmão. Depois disso, tudo gira em torno da descoberta do amor. Ao contrário do giro da roda dos bois. Os dois voltam para casa radiantes; o menino, pelo espetáculo presenciado, batizado agora pelo artista circense pelo nome de "Pacu", nome de peixe . Tonho, pelo fogo do amor, cuspido pela moça de encontro ao seu peito...

Porém, eles voltam para casa e a roda trágica se dirige agora para Tonho. A camisa amarelara no varal da família inimiga havia secado. Era preciso correr, ou ficar e enfrentar a chegada da morte.

Mas a noite traz consigo o encanto da vida que se renova sob a forma da entrega amorosa. Tonho tem sua primeira noite de amor. Pacu observa que a chuva trouxera a esperança. Ele quer recontar sua estória. Quer ver a sereia. Sai então como se estivesse em transe, recontando, refazendo a leitura de sua vida. O sorriso do menino não pode explicar o desfecho que se aproxima. Ele parece antever que a chuva remexe por dentro aqueles que se abrem para beber sua água. Ele queria virar peixe. Virar "pacu"...

Contudo, para aqueles que estão possuídos pela vingança, o frescor da chuva nada pode fazer. O menino caminha mais uns passos. O seu assassino dispara. Tonho desperta, pressentindo o pior. A casa é despedaçada pela dor mais doída. A perda de um inocente. A roda trágica havia sido quebrada. Pacu, mesmo sem se dar conta, desfez a prisão que era fechada pelas portas da miséria, do abandono e do ódio incomensurável entre duas famílias inimigas.

Tonho sai para o caminho oposto ao da cidade. A encruzilhada é partida. Ele vai encontrar-se com o mar. O filme termina com o mar, e Tonho aturdido diante de sua imensidão, em horizonte por ele redefinido. Para quem se fecha, a dor da solidão. Para quem escapa da roda dos bois, o encontro definitivo com a sereia, com a memória recontada, com o amor envolvido pela chama da entrega.

Quem sabe ele mesmo não estaria ali a esperar por sua sereia? Questões em aberto, para um filme belo, rico em falas simples e sábias, com o teor da beleza penetrando os rincões da dor e do sinal mágico do amor transfigurado pela água a molhar a secura do chão, até então marcado pela marca do sangue e pela sina da vingança. Assim, o círculo da dor é rompido pela tangente do amor em "Abril Despedaçado". Tonho e Pacu se entrelaçam pelas águas da chuva e pela infinitude do mar. É o aberto sentido do sublime que se nos apresenta o desfecho do filme.

Amigos e amigas da sétima arte, essa é a leitura que fiz após a exibição do filme no Cine Filosófico, do dia 14 de maio de 2010.


Abraços cinéfilos.

Jorge Leão

17 de maio de 2010

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Mandamento de professores e médicos...

Mandamento de professores e médicos ...

Quando o professor jura levar conhecimento e ciência para os alunos, no dia de sua formatura, tal empreitada deveria ser comparada a de um médico, que jura, também ao receber o diploma, que irá lutar incondicionalmente pela qualidade de vida de seus pacientes.

Por isso, se me permitam os documentos oficiais, o ofício de um professor pode ser comparado a um de médico. Os dois vivem situações de risco em seu dia-a-dia. Alguns dão receitas. Outros preferem olhar nos olhos de seus alunos. Alguns conversam sobre sua construção de vida. Outros distanciam o olhar de seus pacientes. Alguns receitam remédios. Outros, além disso, fazem seus pacientes e alunos sorrirem. Os remédios, às vezes, não fazem o efeito esperado. Às vezes, médicos e professores passam remédios que não fazem mesmo nenhum efeito, nem a longuíssimo prazo.

Contudo, a palavra final não cabe aqui a mim, que estando na condição de leigo na medicina, encontro-me na consciência inquieta de um professor de filosofia de escola pública. Penso, porém, que educação e medicina deveriam ser vistas como terapias, isto é, como serviços para elevação do ser. Como estas duas escolas estão infelizmente situadas de modo dissociado, as filas nos hospitais retratam o modo como a política do governo pensa a saúde e a educação, uma vez que os corredores das escolas públicas são muito parecidos. Gente sem luz no olhar. Uns com medo da prova, os alunos, opacos. Outros, com medo do exame médico.

Penso também que o risco de uma educação fragmentada é o mesmo da medicina que trata apenas de sintomas do corpo. As duas abordagens matam do mesmo modo. A diferença é que, no caso do professor, aparentemente o óbito é mais demorado.

Se o mandamento de um serviço é doar todos os recursos para a manutenção de seu propósito primordial, tanto na educação como na medicina o alvo é a saúde integral do ser (corpo, mente, psiquismo, espírito), necessariamente então se trata de um esforço individual e coletivo, para que a escola e as clínicas trabalhem conjuntamente. Além da política de governo, que deve efetivamente pensar a realização desta utopia.

Não que os professores saiam da escola para mesas de cirurgia, mas para oportunizar vivências ecológicas no espaço saturado dos hospitais e clínicas. Os médicos, por sua vez, podem prestar serviços valorosos à comunidade escolar e à comunidade em que se situa a escola, como práticas de prevenção de doenças sexuais, viroses, qualidade de vida, alimentação natural.

Assim, os professores levariam a cura aos que perderam a esperança da cura, a alegria da vida, e os médicos seriam educadores para aqueles que andam distraídos de sua saúde, pois acreditam erroneamente que só se adoece quando o sintoma aparece. Os espaços não são engessados fisicamente, escolas e hospitais podem acolher tanto um quanto o outro de modo orgânico. O lugar do professor é o mundo, além da escola deve chegar a espaços como hospitais. O lugar do médico é o mundo, além dos hospitais e clínicas deve visitar espaços como a escola e a comunidade em seu entorno.

Namastê!

Jorge Leão
Professor de Filosofia do Instituto Federal do Maranhão
São Luís, 02 de abril de 2010

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Tempos Modernos...




Tempos Modernos...

O filme de Chaplin mostra o relógio logo de início. Carneiros andando amontoados, como indo para o abatedouro. Muitos homens entrando na fábrica.

Reprodução em série de um interesse que não nasce na consciência daquele que produz. Por isso o trabalho é alienado, e o tempo é medido pela contagem da reprodução.

O ritmo da existência é condicionado pelo da máquina que domina. A crítica de Chaplin nos remete assim ao modelo de fabricação consolidado com a Revolução Industrial.

É possível também relacionar o tempo da produção com a alienação da consciência do trabalhador, que se vê submetido ao completo abandono de si mesmo, como mero reprodutor de um sistema de reprodução mecânico.

A transformação da natureza escraviza em vez de libertar o ser humano, posto que compreende a própria natureza sob o olhar de quem detém o controle matemático sobre o objeto. A máquina, como expressão da tecnologia aplicada no âmbito da produção, revela o encantamento do homo faber pelo domínio e, ao mesmo tempo, o mantém preso à sua própria criação.

As longas jornadas de trabalho, o enlouquecido ritmo da máquina, que enfraquece o tempo primordial da vida pelo encantamento da técnica e de seu progressivo uso na exploração do homem pela máquina...

Os passos dados desde a saída de casa até a chegada na fábrica servem para ilustrar que o condicionamento ao mecanismo de dominação sobrevive pela necessidade da sobrevivência e pelo vínculo da sedução ilusória, internalizada pelo trabalhador, em garantir alguma espécie de patrimônio particular ou familiar.

Estes são sintomas do homem que adoece modernamente e que nos podem fornecer alguns elementos capazes de oferecer um debate substancial dentro dos pilares do modo de produção capitalista, a saber: produção, distribuição e consumo de mercadorias.

O que é produzido? Como é distribuído? A que público se destina o produto final da produção em massa?

Pensar o enfoque sociológico destes novos tempos, e suas implicações políticas, econômicas e culturais, pode traduzir nova compreensão sobre o processo de produção na sociedade capitalista.

Esta seria, portanto, uma pista possível, dentre outras, para a leitura deste clássico de Chaplin.


Jorge Leão
Professor de Filosofia do Instituto Federal do Maranhão

Em: 30 de setembro de 2009

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Formar, informar, deformar...

Uma reflexão sobre a formação de nossos professores de filosofia.
Abraços fraternos,
Jorge Leão

Formar, informar, deformar...

No âmbito educacional, a filosofia encontra o desafio de formar o ser humano em sua integral perspectiva. No entanto, a realidade pedagógica em que nos situamos, traz desafios que impedem a concreta efetivação deste processo.

Primeiro, no aspecto de nossos cursos regulares de filosofia, de um modo geral, o aspecto informativo (as diversas doutrinas, sistemas e teorias da história da filosofia) se sobrepõe ao elemento formador, enquanto processo de diálogo permanente com os problemas levantados e sua amplitude contextual, sobretudo às vivências e inferências do leitor, aprendiz, educando...

Da retomada dos assuntos apresentados no período em que nos “formamos” ao encontro com os alunos em sala de aula, novas lacunas se abrem, não apenas pela deficiência de informações ao longo de nossa frágil formação, mas na completa ausência de ligação entre os dados históricos e o cenário concreto da escola em que se encontram os professores de filosofia.

A experiência filosófica implica em possibilidades que nos remetem à questão: por que ensinar filosofia? A relação, desse modo, é de um profundo significado político, existencial e estético. Ora, se a informação não possibilita uma reformulação de nosso código lingüístico academicista, então toda a estratégia de se inserir a filosofia como disciplina curricular encontra-se esvaziada.É assim que nos colocamos diante da informação que recebemos e da que iremos transmitir.

Enquanto professores, não podemos confundir as instâncias do saber, mediado pelo pensamento vivo na experiência do ensino, com as estruturas massificadas do repasse burocrático de uma informação destituída de sentido, o que seria apenas perder de vista a unidade entre saber e ressignificar a história da filosofia por meio de sua inserção na realidade da sala de aula.

Retomando o conceito de práxis, a mediação do pensamento com a realidade cotidiana e vivencial torna-se elemento fundamental do ensino, enquanto formação básica do professor. A tarefa está, pois, em redimensionar o ensino tendo como eixo orientador a crítica auto-avaliativa da ação pedagógica, posto que “a reflexão crítica adquire sentido ao transformar-se em práxis” (GHEDIN, 2008).

Assim, retomamos aspectos considerados básicos para a formação do professor de filosofia, a saber: o que ensinar em filosofia? Isto é, qual é a especificidade do conhecimento filosófico? Em que sentido esse conhecimento contribui para a formação humana?

Outro elemento que deve figurar com clareza a perspectiva pedagógica do professor de filosofia é sobre por que ensinar filosofia? O que nos motiva como professores ao processo de ensino? Neste âmbito, reconhecemos tocar uma questão polêmica, e, ao mesmo tempo, crucial, haja vista a ausência de elementos claros sobre as razões de a filosofia estar ou não assumindo uma condição de disciplina no currículo do ensino médio brasileiro.

A academia ainda encontra-se, muitas vezes, fechada em sua proposta curricular, inclusive quando se oferta cursos de licenciatura em que a produção de debates sobre o tema encontra-se sufocado pela postura enciclopedista, delimitada, como se sabe, ao âmbito da história da filosofia.

Direcionado ao trabalho do professor na escola, um curso de formação de professores de filosofia deve necessariamente saber qual a realidade do ensino médio brasileiro. A completa distância e por conseqüência o afastamento da escola levam o estudante de filosofia a não saber, de fato, para quem ele vai falar. Assim, os mais terríveis absurdos metodológicos são realizados em sala de aula, por conta de um completo desconhecimento sobre a teoria da aprendizagem, o processo de conhecimento e a psicologia da adolescência, que deveriam constar em nossos cursos de licenciatura em filosofia.

Por isso, como ensinar a filosofia para o público do ensino médio, se não houve o preparo teórico, a fim de estabelecer critérios epistemológicos, éticos e didáticos para o desempenho da relação do professor em sala de aula? O desafio é presente no aspecto de que, caso não ocorra o cuidado específico com a mediação da palavra e do processo de ensino, o professor de filosofia trará para a escola a deformação da problemática do ensino filosófico, pois fatalmente cairá no hermetismo conceitual ou no ativismo das habilidades e competências, destituído de fundamentação e do trabalho dos conteúdos filosóficos necessários para o ensino médio.

Assim, o que cabe à formação de um professor de filosofia? Esta pergunta diz respeito ao problema central que se impõe a todos nós, ou seja, qual é, na verdade, o papel da filosofia na sociedade contemporânea? Investigar o cerne desta questão constitui descortinar o papel social do professor, enquanto elemento político de fundamental importância para a construção de um espaço de produção de conhecimento, que deve ser a escola.

O debate entre os grupos de professores na academia sobre o ensino e a sua conseqüente reflexão e autocrítica promove o fortalecimento da prática reflexiva em filosofia. Por isso, é necessário priorizar o entendimento de uma formação em processo de construção permanente, em que a história da filosofia, o programa a ser pensado, a concepção de avaliação, os aspectos metodológicos, traduzam, mediante uma práxis transformadora, o papel de nosso agir enquanto professores de filosofia.

Que filosofia? Que formação? Apenas informação, sem formação problematizadora, poderá nos conduzir a uma deformação de nossos estudantes, futuros professores e dos alunos que receberão os impactos desta “filosofia”, formando, informando ou deformando...


REFERÊNCIAS

- GHEDIN, Evandro. Ensino de Filosofia no Ensino Médio. SP: Cortez, 2008.

- VASQUEZ, Adolfo S. Filosofia da práxis. RJ: Paz e Terra, 1991.

Sobre as razões da filosofia

Sobre as razões da filosofia

O estudo da filosofia em geral pressupõe uma fundamentação de base epistemológia (sobre os fundamentos do conhecimento e seus modos de apreensão e suas relações com a ciencia), antropológica (pois implica em uma concepção de homem) e política (na medida em que o espaço público é construído pela consciencia e liberdade de seres co-responsáveis).

Neste aspecto, temos assim elementos definidores de uma relação formadora da filosofia, ligando-se aos aspectos educativos, enquanto formação integral do ser humano.Vale ressaltar que a educação não se delimita a um sistema de códigos ou informações a serem transmitidas, muito menos a um domínio da análise intelectual sobre uma parte delimitada da experiência humana no mundo, como faz a ciência.A idéia de uma instrução pedagógica tem sido dominante, quando se associa a compreensão de uma escola que se delimita ao ensino de uma ciência específica.

Por isso, não se pode confundir educação com instrução (para isso, uma excelente referência é "A Educação do Homem Integral", do filósofo e educador brasileiro Huberto Rohden). Assim, a educação deve nos dizer muito mais do que uma simples adequação a uma sistema de códigos, normas de conduta, notas, ou de qualquer processo de "formação" (melhor dizer, informação) que venhamos a ter ou adquirir ao longo da existência.

Outro referencial é ver a concepção de educação em Platão, uma vez que para este pensador a filosofia, enquanto conhecimento que conduz a alma ao mundo inteligível - a Idéia do Bem), deve constituir o pressuposto teórico do agir político.

Seguindo a marcha histórica, encontraremos a hipertrofia da intelecção, em detrimento da formação ética e da sensibilidade estética. Deve-se, portanto, pensar atualmente sobre as razões da filosofia, a fim de restituir o aspecto de uma formação integral para a educação.

Abraços fraternos a todos,
Jorge Leão

domingo, 14 de junho de 2009

O estar sendo na travessia

Um breve ensaio sobre dois textos "travessos", de dois grandes autores que abrem outros afluentes no percurso de nossa travessia humana, "demasiada humana",
abraços quixotescos, na abertura de mais veredas...
Jorge Leão

O estar sendo na travessia

Jorge Antônio Soares Leão[1]

O caminho que se descortina em “Assim Falou Zaratustra” (1883) coloca o destino humano diante de coisas perigosas.

Inicia-se a jornada do “além-do-homem”, aquele que se dirige para a afirmação da vida, na fecundidade de sua vontade, que é o poder de criar e re-criar a si mesma a todo instante.

O homem é um estar-sendo, no espaço de uma trajetória em que a arte da vida é tecida pelo fecundo trabalho da vontade. Não há objetividade duradoura que dê conta da poesia do Zaratustra, por isso ele acena a vontade de afirmar a vida como o traço distintivo de sua escalada em relação ao código moral do discurso metafísico e do caráter doutrinário da religião cristã.

Por isso, no Prólogo, Nietzsche considera que:

“O homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo.
É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar.
O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso.” (p. 31)

Em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa (1908-1967), a saga do jagunço Riobaldo expõe também um percurso afirmativo, que é a descoberta do sertão enquanto travessia. O destino de Riobaldo é um estado de vir a ser no caminho que se impõe ao drama localizado do homem sertanejo.

Em Riobaldo, o sertão está em todo lugar, pois o “sertão é travessia”. Esta descoberta, assim como em Nietzsche, não é algo conceitual, do ponto de vista de uma ordem metafísica do real, uma vez que a poética do sertão constitui um estar sendo sem limites ou definições, apenas o horizonte e o mistério das veredas que surgem como caminho.

Uma passagem que ilustra este percurso existencial é quando Guimarães Rosa expõe o pensamento do sertanejo sobre a realidade:

“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” ( GS:V, p. 80).

A travessia é, com isso, destituída de estabilidade. Não há uma ordem “a priori” no viver do sertanejo, pois a vida não se encaixa em nenhuma definição, em nenhum fundamento absoluto, pois, para Riobaldo, “viver é um descuido prosseguido” (Idem, p. 86). Isto é, no drama fecundo do viver, nasce a trilha das veredas que se vivenciam a cada instante, a cada novo confronto, a cada nova partilha de amizade e de amor com seu companheiro Reinaldo, depois revelado como Diadorim. (Cf. GS:V, p. 172)

Em Nietzsche, encontra-se novamente o drama da vida em termos de uma não garantia objetiva, o que nem a filosofia enquanto metafísica, nem a religião e mesmo a ciência conseguiram delimitar. Em “A Gaia Ciência” (Livro III, § 121, p. 186), Nietzsche considera acerca da vida:

“A vida não é argumento – Armamos para nós um mundo, em que podemos viver – ao admitirmos corpos, linhas, superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo: sem esses artigos de fé ninguém toleraria agora viver! Mas com isso ainda não são nada de demonstrado. A vida não é argumento; entre as condições da vida poderia estar o erro”.

Aspecto percebido também em Riobaldo, quando este nos diz que:

“(...) a vida não é entendível”... (Idem, p. 156).


Desse modo, a trajetória de Riobaldo assemelha-se ao abandonar-se espontâneo da criança do Zaratustra, ou da terceira transformação passada pelo além-do-homem em seu afirmar-se enquanto vontade de poder (Cf. AFZ, Das três metamorfoses, pp. 43-45). Com efeito, na inocência da criança, descobre-se um rio de possibilidades, como na travessia de Riobaldo e seu amigo Reinaldo, na imensidão do São Francisco.

Enquanto o Zaratustra vê na criança a descoberta de um sagrado “sim” ao espírito que “quer a sua vontade” (AFZ, p. 45), Riobaldo relembra da travessia como vida que se irrompe nas águas do São Francisco e se faz descobrir pelo medo e pela confiança do amigo também em travessia. “Viver é muito perigoso”, é a afirmação de Riobaldo em diversas passagens de “Grande Sertão: Veredas”. Como se mistério desvendado na tessitura poética da passagem, do estar sendo em travessia.

Nesta travessia, deslocada do ritmo acumulativo de uma percepção fragmentada, não há espaços para contagens, pois a memória é um passar momentâneo repleto de significados. Por isso, para Riobaldo “um rio é sempre sem antigüidade” (GS:V, p. 162), uma vez que o presente que se apresenta é o sertão enquanto passo descontínuo, ilustrado pela própria estrutura da obra organizada singularmente por Guimarães Rosa, sem divisões, apenas o relato ardente de uma memória recheada de solidão, medo, conflitos, amor e fecundidade poético-filosófica, vivificada pela relação com a vida desconexa, sem entendimento, no sertão apenas, que sonda a própria vida em suas veredas.

Duas passagens bem ilustram o sertão para Riobaldo, quando lemos:

“Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas” (GS:V, p. 161), e ainda quando é afirmado:

“Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (Idem, p. 172).

Assim, a travessia, em seu destino trágico para Nietzsche, e em seu estar sendo Riobaldo, em Guimarães Rosa, perfaz a relação de uma dança, que nem mesmo o próprio homem é capaz de abarcar, uma vez que ele está só no percurso, e necessita ardentemente da alegria e do êxtase da descoberta da criança, em Zaratustra, e de seu amor por Diadorim, em Riobaldo.

Este traço de incertezas, longe de amortizar a queda, abre novos labirintos:

“Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja!” (Ibidem, p. 232).

Pois a vida é algo incerto, “como a vida é cheia de passagens emendadas” (Idem, p. 235).

E ainda, refazendo o traço espontâneo da criança nietzschiana:

“O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu pudesse” (Idem, p. 260).

Mais uma vez, aproximando-se da passagem de Riobaldo pelo sertão, surge a fala poética de Zaratustra, apresentando-nos a suprema vontade, a sua virtude por excelência, a suprema esperança do filósofo peregrino, diante de mil possibilidades no curso da existência criadora:

“Mil caminhos existem, que ainda não foram palmilhados, mil saúdes e ocultas ilhas da vida. Ainda não esgotados nem descobertos continuam o homem e a terra dos homens.

Quedai-vos vigilantes e à escuta, ó solitários! Chegam ventos, do futuro, com misterioso bater de asas; e trazem boa nova aos ouvidos finos.

(...)

Em verdade, um lugar de cura ainda deverá tornar-se a terra! E já a envolve um novo cheiro, um cheiro salutífero – e uma nova esperança.” (AFZ, p. 91)

Por isso, o supremo risco da vida é o não conformar-se com o medo da travessia, é mergulhar e atravessar o rio, aceitando os perigos e ousando vencer os desafios. É como estar em processo de cura, afirmando a condição de plenitude da vida, embora experimentando o drama da dor.

No Livro V, de “AGaia Ciência”, complemento datado de 1886, Nietzsche traz como subtítulo: “Nós, os Sem-Medo”, afirmando no parágrafo 380:

“É preciso ser muito leve para levar sua vontade de conhecimento até uma tal distância e como que para além de seu tempo, para se criar olhos para a supervisão de milênios e ainda por cima céu puro nesses olhos! (...) O homem de um tal além, que quer discernir as mais altas medidas de valor de seu tempo, precisa, para isso, primeiramente “superar” em si mesmo esse tempo” (AGC, p. 296).

Riobaldo, ao segredar a sua travessia ao leitor, o homem de saber apurado e fina instrução acadêmica, ilustra muito bem a leveza pretendida por Nietzsche na passagem anterior, uma vez que a travessia é uma narrativa de si mesmo sobre o sertão, dentro e fora de Riobaldo, não um código de receitas prefixado na ordem determinista do sol escaldante do sertão.

A vida é feita na travessia, por isso é como se Riobaldo estivesse em um drama sem horizontes determinados, em que a jagunçada inimiga pode estar dentro de seu próprio bando, ou guerreando com o diabo, que se apresenta como inimigo de Deus, mas que pode nem existir de fato, o que somente é revelado no término da obra.

Assim, nos diz Riobaldo:

“Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima – o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”. (GS:V, p. 245).

Nestes mundos possíveis, inúmeras veredas se descortinam aos nossos olhos. O amor, a guerra, a fecundidade da vida. Riobaldo atravessando o rio São Francisco, o filósofo do sertão. Zaratustra, por sua vez, em busca dos ares rarefeitos nas montanhas, abandona a planície, depois a ela retorna, para anunciar a suprema alegria da vontade afirmativa da vida.

Por isso, o laço que transforma. renova e revigora os personagens de Nietzsche e Guimarães Rosa é a vida em travessia. Nada é maior que o supremo risco desta passagem, pois é “preciso mais coragem para pôr fim à vida do que para dar começo a um novo verso: sabem-no todos os médicos e poetas”. (AFZ, p. 213).



BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

CORDEIRO, Robson Costa. O Sertão de Riobaldo: uma leitura a partir de Nietzsche, in: Revista Trágica – 1º semestre de 2008, nº 1 pp. 97-105.

NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 8. ed. Tradução de Mário da Silva. RJ: Bertrand Brasil, 1995.

______. Coleção Os Pensadores. SP: Nova Cultural, 2005.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. RJ: Nova Fronteira, 2001.




[1] Professor de Filosofia do Instituto Federal do Maranhão