quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Comentários sobre o filme "Ponto de Mutação"


Caros amigos da sabedoria e da arte, o comentário deste filme não visa apenas relatar alguns de seus mais interessantes diálogos. “Ponto de Mutação” é também uma bela oportunidade de ilustrar um diálogo profundo entre filosofia, ciência, arte e religião, de modo dinâmico e interdisciplinar. Este filme poderá, desse modo, suscitar debates importantes sobre o papel do conhecimento no mundo atual e suas implicações éticas, políticas, sociais, econômicas e culturais para todos os seres vivos que habitam nosso planeta, tão belo e, ao mesmo tempo, tão depauperado pela corrida armamentista e tecnológica. Destacaremos a seguir aquilo que considero serem alguns dos aspectos essenciais do filme. Bom filme! E bom debate!

1 – Entre a visão e a perspectiva...

O filme “Ponto de Mutação” (1990), dirigido por Bernt Capra, é baseado na obra homônima do físico austríaco Fritjof Capra, e aborda várias questões ligadas à ciência, filosofia, política, religião, ecologia, sentido da vida, criação estética. O ambiente para isso é o lindo cenário no litoral noroeste da França, no alto do Mont Saint Michel, uma construção medieval localizada na fronteira com a Normandia e a Bretania. Em suma, o debate entre um poeta, Thomas Harrimann (John Heard), um ex-candidato a presidência dos EUA, Jack Edwards (Sam Waterston), e uma cientista, Sonia Hoffmann (Liv Ullmann), aborda o problema dos paradigmas que norteiam o conhecimento científico, de seus conflitos teóricos, de suas implicações para a vida dos seres vivos e o grau de envolvimento que cada ser humano tem, quando da consciência destes problemas. É um filme com diálogos complexos, que nos incita a promover também debates profundos sobre as temáticas por ele apresentadas.


Inicialmente, o diálogo inicia-se com o poeta questionando ao ex-candidato à presidência dos EUA sobre o fato de termos de abandonar os princípios morais para adequar-se ao sistema. É a velha questão: “abandonei meus princípios porque tento mudar as coisas inserindo-me no sistema?”.


O poeta afirma ao político: “este lugar parece um conto de fadas... achei que gostaria de vir aqui para descobrir aquela qualidade preciosa tão em falta no mundo”.


Ao que Jack Edwards responde: “visão”...


E o poeta: “perspectiva. Perspectiva, Jack”...


Eis o cerne da questão, duas visões de mundo completamente antagônicas: a visão pragmática do político que visa resultados práticos, e a perspectiva do artista, que vê a realidade a partir de um processo criativo, alimentado pela descoberta da beleza e do enlace poético com a existência.

2 – Os modelos de tempo


No início, os homens não tinham relógio, e o tempo não era mecânico. Eram as estações que regulavam o registro dos acontecimentos. Até idéias religiosas, como a do Juízo Final, estava movida por este enlace primordial com a natureza. Por isso, o tempo era sagrado. Esta explanação confunde a mente de Jack. Assim, ele afirma: “não consigo me concentrar em nada que não seja específico. A poesia apenas me confunde”...


Somos interligados pelo sagrado tempo da memória, mas esta civilização, a do domínio da técnica desconhece seus deuses. Segundo o tempo de nossas origens míticas, estamos todos interligados. “Ninguém é uma ilha. Todo homem é parte do continente, portanto, nunca pergunte por quem o sino dobra... ele dobra por você”.

3 – A fragmentação da consciência


Ao entrarem no interior da igreja, eles ficam extasiados com a sua grandeza arquitetônica, enfatizando que isto constituiu uma estratégia para diminuir a individualidade do homem diante da infinitude divina, largamente utilizada pela Igreja Católica no período medieval. Contudo, a moderna sociedade secularizada coloca o indivíduo no centro de tudo, o que acaba por transformá-lo em uma parte desconectada do todo, movida apenas por interesses particulares.

4 – A sala das engrenagens e a crise de percepção


Neste momento, a figura da cientista entra em cena, seu nome é Sonia Hoffmann, e ela passa a argumentar sobre o tempo mecânico, ilustrado pelas engrenagens do relógio, que se tornou o modelo do cosmos, e seus idealizadores “achavam que a natureza era só um grande relógio, não uma coisa viva. Uma máquina”.


Os cientistas lêem pouca poesia, e os políticos têm idéias parecidas com este relógio. O pensamento do filósofo francês René Descartes (1596 – 1650) serviu como fundamento teórico para os cientistas no século XVII, e ainda hoje influencia o mundo, inclusive os projetos políticos. Entretanto, a ciência avança e a tecnologia inaugurou a era do microchip, do tamanho de uma unha, substituindo as pesadas engrenagens. Este modelo impõe um modo de conceber as coisas a partir de seu funcionamento, e o benefício lucrativo é o resultado de uma apropriação da natureza e de seus recursos. Assim, florestas inteiras, como a Amazônia, sofrem o risco de sumirem, porquanto a lógica econômica determina o que produzir e para quem vender.


Os problemas contemporâneos são de ordem global e não podem ser compreendidos como peças isoladas, ignorando o conjunto, que se conecta com cada parte. Tudo está conectado. A medicina, os gastos com pesquisas, novos hábitos alimentares, a agricultura, são exemplos de conexões. Precisamos começar a mudança partindo da nossa maneira de ver o mundo, uma vez que “todos os problemas são fragmentos de uma só crise, uma crise de percepção”. O sistema médico assemelha-se à política, não encorajando a prevenção, só a intervenção, por isso, segundo Sônia, “precisamos de uma nova visão de mundo”, superando a visão cartesiana, reconhecendo suas limitações, sua visão do mundo como máquina, e encontrar novas maneiras de abordar a realidade, via conhecimento holístico.


A natureza possui dois princípios complementares, o masculino e o feminino, mas “os homens criaram ferramentas e armas, físicas e intelectuais para desequilibrá-los completamente! Demos ferramentas mecanicistas a pessoas sedentas de poder”, comenta Sonia, de modo enfático.

5 – A ciência entra em crise: o drama da responsabilidade ética


Sonia é perguntada por que está naquele lugar. Ela responde que suas pesquisas com laser, que poderiam ser utilizadas para a pesquisa com o câncer, foram aplicadas ao programa Guerra nas Estrelas. Eis o motivo. Isso a fez rever suas pesquisas. A física moderna também foi obrigada a mudar seus conceitos. Os físicos, “após muitos anos de frustrações, tiveram de admitir que a matéria não existe com certeza e em lugares definidos, mas sim mostra a tendência a existir”. A ciência se defronta com uma natureza repleta de eventos probabilísticos. Os elétrons não ocupam posições fixas, mas se manifestam como um padrão de probabilidades, espalhados pelo espaço, “e a forma deste padrão muda com o tempo, o que, para a percepção humana, pode parecer movimento”. O poeta inglês William Blake (1757 – 1827) é citado: “Se as portas da percepção se abrissem, tudo aparecia como é”. O poeta acomoda-se e começa a tocar no órgão a melodia inicial da música “Jesus Alegria dos Homens”, do compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685 – 1750).


Para a física atômica, “a natureza essencial da matéria não está nos objetos, mas nas conexões”, como na harmonia musical, que para acontecer reúne em si as notas, que, ouvidas isoladamente, são freqüências de som, vibrando em determinada amplitude de onda. Desta harmonia surge a possibilidade de contemplar a beleza de uma composição musical.


Além da beleza, há também os impactos sociais e políticos que uma pesquisa científica pode acarretar. Segundo a cientista, “somos todos parte de uma teia inseparável de relações”. Ao visitar o museu da bomba de Hiroshima, pude observar “as vítimas de meu trabalho científico”. Na universidade, as implicações éticas da pesquisa científica não são ensinadas, mas sim uma idéia ultrapassada de “ciência pura”.


Além disso, os investimentos acadêmicos voltam-se cada vez para alimentar o desenvolvimento bélico. Nos EUA, por exemplo, 70% da pesquisa científica é paga pelos militares. A ciência realiza nas pessoas o otimismo ligado a um poder de transformar para melhor as coisas. Entretanto, o poder do conhecimento sem a sabedoria e os valores éticos é unilateral e limitado. Este aspecto é denominado de “cientificismo”. E é duramente questionado pela crítica elaborada por Sonia em sua exposição.

6 – O padrão holístico


Por isso, uma nova ciência deverá surgir, que compreenda os elementos da natureza de modo integrado, isto é, uma teoria “que coloca todas as idéias ecológicas de que falamos numa estrutura científica coesa e coerente. Nós a chamamos de teoria dos sistemas, dos sistemas vivos (...) em vez de concentrar nos blocos básicos, a teoria dos sistemas pensa nos princípios de organização. Em vez de picotar as coisas, ela olha para os sistemas vivos como um todo”.


Desse modo, a visão holística confronta-se ao modelo cartesiano, que compreende a natureza pela análise das partes que a compõem. Ao contrário, é necessário pensar as partes interligadas a um conjunto em equilíbrio, por um vínculo de interdependência. Por isso, “a teoria dos sistemas reconhece esta teia de relações como a essência de todas as coisas vivas”. Outro aspecto fundamental é a idéia de auto-transcendência, uma vez que “cada organismo vivo tem potencial para a criatividade, para surpreender e transcender a si mesmo”.


Por outro lado, a preocupação desenfreada pelo crescimento econômico precisa ser interrompida. Os números constituem um alerta: 40% da riqueza mundial está concentrada nos EUA, para alimentar 6% da população mundial. Segundo a cientista, “precisamos de uma sociedade sustentável, em que nossas necessidades sejam satisfeitas, sem diminuir as possibilidades da próxima geração”. Se quisermos viver em equilíbrio com a vida, precisamos pensar em ações voltadas para a permanência de futuras gerações no planeta.

7- O olhar do artista


O filme caminha para o seu fim. A grandeza da natureza parece agora suscitar inspirações poéticas. Surge a necessidade de uma palavra voltada para a percepção da realidade pelos olhos da poesia. Assim, o poeta Tom cita Pablo Neruda: “(...) Caminho, como tu, investigando a estrela sem fim... e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe preso dentro do vento”. Ele, com isso, questiona tanto o poder político quanto o olhar da ciência, quer de caráter cartesiano ou holístico. Para ele, tais tentativas de nomear o mundo não resolvem o problema, pois a vida não cabe em estruturas conceituais ou modelos explicativos, posto que “a vida sente a si mesma”, e “(...) é infinitamente mais que as suas ou as minhas obtusas teorias a respeito dela”.


Sonia contempla o pôr-do-sol, refletindo sobre as palavras de Tom: “e as pessoas que você ama, como ficam em seu sistema?”; sua filha chega, abraça-a, e ela diz: “vamos embora”...


Os dois amigos aparecem andando. Jack diz: “acho que meu longo fim de semana na França está acabando. Talvez eu esteja cansado de ser um estrangeiro... afastado do ambiente que carrego dentro de mim. Nosso sistema emocional, ela diria, precisa ser nutrido. Não faz diferença. Você está preso às pessoas que conhece. Ela está certa, claro, sobre quase tudo. Até o que eu não entendi parecia estar certo. Então, devo aceitar isso? Este é um daqueles momentos de mudança?”...


Tom cita outro trecho de um poema, para ilustrar o desfecho do belo encontro:
“Você é a mulher; eu, o homem, este é o mundo e cada um é obra de tudo. Os passos silenciosos na areia, o desconhecido que se esgueira... Os dançarinos e anjos girando pela aldeia... e os lindos braços em volta de nós e do que conhecemos (...) esqueci o resto desta droga de poema!”...


O filme termina com a belíssima paisagem do castelo de Mont Saint Michel. Enfim, a harmonia retomada pelo encontro entre filosofia, ciência, arte, política e religião. Seria um bom momento para comemorarmos a alegria de estarmos vivos, habitando um belo planeta, fruto da perfeição infinita de Deus e da fraterna convivência entre seres humanos e todos os organismos vivos. Todos juntos, filósofos, cientistas, artistas, líderes políticos e religiosos, irmanados pela consciência ecológica de uma vida solidária.


Abraços quixotescos!
Jorge Leão
12 de Setembro de 2008

Um comentário:

filosofia com arte disse...

Este filme pode ser trabalhado em tema sobre filosofia das ciências e debate multidisciplinar, como proposta para orientação pedagógica na escola do século XXI. Um tema instigante, motivado por um diálogo aberto, desprovido de amarras intelectuais e sectarismos academicistas. Muito boa dica de trabalho para filósofos, cientistas e religiosos!
Abraços em todos! Jorge Leão