domingo, 5 de outubro de 2008

A anti-filosofia na "Teoria do Medalhão", de Machado de Assis

Amigos e amigas da sabedoria e da arte...
Este conto machadiano ilustra bem um relativismo ético, típico de nossa politicagem contemporânea e de nosso jeitinho de ser brasileiro. É um bom texto para debatermos em sala, quando trabalhamos temas como valores, liberdade, ética, política. Vale a pena levar para sala! Abraços quixotescos, com o perdão do "medalhão"...
Jorge Leão

A ANTI-FILOSOFIA NA “TEORIA DO MEDALHÃO”, DE MACHADO DE ASSIS

O conto “Teoria do medalhão - Diálogo” envolve ironia e um receituário anti-filosófico perfeitos. É um roteiro de como ser bem sucedido na vida, sem a necessidade da reflexão crítica. O pai de Janjão, o jovem que está prestes a alcançar a maioridade, aponta inúmeras pistas de desconsiderar por inteiro a fala do filósofo Sócrates (470 - 399 a. C.) de que “uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. O contrário aqui é a lei. Quanto menor o esforço para pensar, maior o êxito do "medalhão".

O filho Janjão é nada mais que um projeto frustrado do pai. Este faz de tudo para dar ao filho a notoriedade que tanto almejou. Por isso, recomenda ao jovem a profissão de “medalhão”, a fim de ser notado e ovacionado por todos, saindo de uma vida de anonimato. Assim, “(...) qualquer que seja a profissão de tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum”. (ASSIS, 2002, p. 52).

Ser “medalhão” é aprender, pois, um ofício. Ele deve ser ensinado, para livrar o filho de uma vida de insucessos e opacidade social. A sua recomendação é que Janjão domine o modo de ser de um “medalhão”. Por isso, “(...) como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade”. (Idem, p. 53)

Para o bom êxito da profissão, é necessária uma condição precípua, não cultivar idéias próprias. Mais uma vez a ironia machadiana introduz um conceito anti-filosófico básico, isto é, o de “heteronomia”, que implica na incapacidade de pensar por si mesmo as leis que determinam o curso da existência, individual ou coletiva. Um indivíduo heterônomo, desse modo, apenas reproduz o que já foi dito. Ele é uma peça de manipulação no sistema social dominante. Este item é destacado como valor principal pelo pai de Janjão. Ouçamo-lo:

“Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente”. (Idem, p. 54).

Para defender-se da autonomia, isto é, da possibilidade de cultivar idéias próprias, o "medalhão" deve evitar a todo o custo a solidão, uma vez que “(...) a solidão é oficina de idéias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade”. (Idem, p. 55).

Por conseqüência de sua inabilidade no cultivo de idéias próprias, o "medalhão" não deverá compreender a origem dos problemas, pois isto promove a reflexão crítica, que é danosa para os interesses imediatistas do mesmo. Mais uma vez, nos deparamos com uma estratégia eficaz para a anti-filosofia, visto que neste cenário o conhecimento processual da filosofia, que implica em sondar as raízes dos problemas, suas causas primeiras, é inutilizado pela praticidade do ofício em voga. Filosofia para o "medalhão" é a mais pura perda de tempo que o homem foi capaz de inventar.

É possível aqui aproximar o sentido das palavras deste professor ao seu efeito contrário, pretendido pelo filósofo alemão Karl Jaspers (1883 - 1969), quando do papel da filosofia no mundo, que perturba a paz de um mundo recheado de fórmulas prontas e acabadas. Com efeito, para Jaspers, a filosofia está cercada de inimigos, típicos da estratégia a ser dominada com a “teoria do medalhão”. Assim, Karl Jaspers assinala:

“(...) a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário – tudo isso proclama a antifilosofia” (JASPERS, 1993, p. 77).

As palavras aqui colocadas confirmam a pretensão de tornar Janjão um “medalhão”, ou, na terminologia de Jaspers, um “antifilósofo”.

Enfaticamente, assinala ainda o pai do futuro “medalhão” que:

“(...) com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais de ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo traz consigo o perigo de inocular idéias novas, e é radicalmente falso” (ASSIS, 2002, p. 58).

O próprio Dom Quixote de La Mancha, maior personagem de Miguel de Cervantes (1547 - 1616), é citado para tirar qualquer dúvida sobre quem irá prosperar no sistema de eficácias do “medalhão”. A ênfase é acentuada ao limite da aplicação de uma técnica, não de uma elaboração filosófica sobre os porquês remotos das coisas que constituem a realidade. Por isso, a recomendação é direta: “Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos” (Idem, p. 59).

Mas, para que esta teoria seja realmente eficaz, deve tornar-se pública. O “medalhão” deve aprender a manejar as estratégias que o conduzirão aos píncaros do prestígio e do reconhecimento social. Ele deve fazer de tudo para agradar. Deve ser bem visto, amoldando-se aos meandros da festa de máscaras que anima o salão da cordialidade e da simpatia. Tornar-se homem público, sem recear vestir a roupa da superficialidade, uma vez que “(...) a publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves resquestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a consciência do afeto do que o atrevimento e a ambição” (Idem, p. 59).

Outra passagem ilustrativa do fenômeno publicitário presente na “teoria do medalhão” é expressa quando o pai de Janjão afirma: “Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito” (Idem, p. 60).

E ainda mais uma vez a ironia. Agora o seu alvo é a metafísica. O discurso do “medalhão”, ironicamente, deve preferir a metafísica. Fica claro aqui o uso de uma fina ironia, traço tão peculiar à obra machadiana. A metafísica aqui mencionada não é a ciência que visa inquirir sobre a essência das coisas, mas, ao contrário, um meio eficaz de camuflar o sentido oculto da realidade, pelo uso de uma retórica bem elaborada e articulada. A inversão conceitual é proposital na “teoria do medalhão”, para que o sentido da metafísica seja um despropósito teórico a ser seguido por Janjão. Ouçamos a recomendação:

“Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: - ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica: - é mais fácil e mais atraente”. (Idem, p. 62).

E ainda, quando assinala que:

“Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está acabado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade” (Ibidem).

Para finalizar a lição, o falso diálogo, como é percebido desde o início, o pai de Janjão, responde ao filho que a filosofia não é necessária para o “medalhão”, confirmando o que já estava implícito durante todo o texto. Nada de filosofia, ao menos enquanto processo de pensamento. Um pouco de “filosofia da história”, quem sabe, para reproduzir conceitos pensados por filósofos do passado. Isto sim é permitido, pois não exige busca intelectual, apenas reprodução de achados alheios.

“ – Nenhuma filosofia?
- Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. “Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc. , etc.” (Idem, p. 63).

A lição acabou. Janjão ultrapassou a maioridade. Deve ter como princípio não ter idéias próprias e usar os valores morais da publicidade e do prestígio para eficazmente lograr êxito no mundo.

“ – Meia-noite.
- Meia-noite? Entra nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa dessa noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir” (Idem, p. 64).

Mais uma lição: saber manejar as circunstâncias para o alvo almejado, uma esperada leitura do pai de Janjão sobre Maquiavel...

BIBLIOGRAFIA

- ASSIS, Machado de. Contos. São Paulo: FTD, 2002.

- JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico, p. 138. In: ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando - Introdução à Filosofia. 2. ed. revista e atualizada. São Paulo: Moderna, 1993.


Jorge Leão

Professor de Filosofia do CEFET-MA e membro do Movimento Familiar Cristão, em São Luís – MA

Em: 05 – 10 - 2008

Um comentário:

♥JeSsIkA wIlLiAnS♥ disse...

o blog esta muito bom neus parabens!!!!!!!!!!!!!!penso que esse tipo de trabalho merece incentivo muito bom, continuem crecendo bjus!